quinta-feira, novembro 10, 2005

Ti Bento

Vou emigrar! Vou emigrar!-disse o Artur de si para consigo sentado na tripeça de til preto, solando umas botas de atanado.
Não se sentia realizdo em suas ambições. No termo da segunda infância começou como aprendiz de sapateiro a receber do trabalho duas patacas e com elas já fazia um figurão. Mas sempre notava um vazio, uma insuficiência em sua vida de rapazinho. Raramente ferrava com companheiros do lugar. A sua vida assemelhava-se ao raiar da manhã entrando Maio com as reverberações vermelhentas a pintarem a cal da parede do quarto, explodindo de criação na luz do Sol, génese do mundo. Dentro dele alguma coisa o impelia sem saber para onde, nem para quê.

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Horácio Bento de Gouveia
Horácio Bento de Gouveia, foi quanto a mim, o maior escritor madeirense contemporâneo. Figura humilde e simples, escritor por vocação e profundo conhecedor da realidade da Madeira no século XX, os seus livros retratam a vida da sociedade madeirense, presa nessa época a uma emigração crescente em que a Venezuela e a África do Sul constituiam verdadeiros "El-Dorados" e miragens, objectos de sonhos e de desejos...
Horácio Bento, retratou essa realidade como ninguém, de forma sentida onde as lágrimas da despedida no cais eram rápidamente aumentadas pela saudade e logo a seguir, amplamente compensadas pela alegria do regresso ainda que temporário à terra.
O Dr Horácio Bento (Ti Bento, como nós lhe chamavamos...), leccionava Português no Liceu do Funchal (Jaime Moniz) e quiz o destino que nesse já longínquo ano de 1973/74, ele fosse chamado a dar aulas de "Organização Política e Administrativa da Nação" e por consequência, meu professor... Era um Homem franzino, de ar frágil, com um sentido de humor muito particular, apreciador da Beleza e conhecedor profundo da natureza humana do Ilhéu.
Dele recordo em especial os dias seguintes ao 25 de Abril de 1974...
Na primeira aula a seguir ao 25 de Abril, disse aquilo que sentia e estava há muito voluntáriamente silenciado e terminou, afirmando que as aulas de "Organização Política e Administrativa da Nação" tinham terminado, porque esta Nação não podia continuar a ter esta Organização...
Recordo-o com saudade, e só lamento que a divulgação da sua escrita não tenha sido efectuada de forma mais intensa em todo o espaço português.